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Rendimento Social de Inserção: Contributos para o conhecimento de uma prestação de último recurso

Frederico Cantante, Tânia Almeida, Catarina Mendes Cruz, Pedro Estêvão, Renato Miguel do Carmo, Pedro Adão e Silva

Resumo


Pretende-se neste texto colocar em evidência informação estatística relevante nem sempre tida em consideração no debate público e político em torno do rendimento social de inserção (RSI). Da análise efetuada, com base em informação primária das estatísticas da Segurança Social, conclui-se que 41% dos beneficiários desta prestação tinham menos de 25 anos e 31% menos de 18 anos. Isto significa que cerca de 1/3 dos beneficiários do RSI são menores de idade que vivem em agregados familiares muito pobres. Muitos dos beneficiários desta prestação são, por isso, crianças e adolescentes cujas condições materiais de existência, pautadas por formas de destituição material severas, seriam ainda piores caso não tivessem acesso a esta prestação.


Apesar do peso muito significativo dos menores no universo de beneficiários de RSI, esta prestação é predominantemente auferida por beneficiários em idade adulta, uma parte deles com inserções no mercado de trabalho bastante precárias e incipientes: no ano de 2019, a proporção de beneficiários de RSI que tinham rendimentos do trabalho face ao total de beneficiários de RSI com idade entre os 18 e os 64 anos era de 11%. No entanto, este indicador apresenta importantes variações no território. Em alguns municípios o seu valor situa-se acima dos 20%.


Em termos médios, a variação da duração desta prestação ao longo do território continental não parece seguir padrões muito vincados, embora seja visível que o tempo médio de recebimento de RSI é consistentemente maior nos municípios da Área Metropolitana do Porto e menor nos municípios fronteiriços do Alto Minho, das Beiras, em alguns municípios do Oeste e do eixo central das regiões do Algarve e Alentejo.


Em geral, os municípios do litoral de Portugal continental (excetuando alguns municípios da Área Metropolitana de Lisboa e da Área Metropolitana do Porto) e da região do Minho tendem a ser os que apresentam uma incidência menor da proporção de beneficiários de RSI por cada 1000 habitantes em idade ativa. Entre os dez municípios do país que registam um número mais elevado de beneficiários de RSI por 1000 habitantes em idade ativa, seis são os que compõem a ilha de São Miguel. No município da Ribeira Grande, o valor deste indicador era, em 2019, sete vezes superior à média nacional (220,3‰ para 30,1‰).


O valor de referência do RSI tem vindo a afastar-se do apurado para o limiar de pobreza na sociedade portuguesa (cerca de 37%, no caso dos adultos que vivem sós). Isto significa que a situação dos beneficiários de RSI se tem vindo a deteriorar no conjunto da população pobre em Portugal. 


1. Introdução


O RSI é uma prestação vocacionada para o apoio às pessoas e famílias que se encontram em situações de pobreza extrema, ou seja, aos mais pobres dos pobres. Enquanto a população que vive abaixo do limiar de pobreza após transferências sociais tem variado neste milénio entre cerca de 17%-20% da população, os beneficiários de RSI apenas uma vez (em 2010) ultrapassaram 500 mil (sensivelmente 5% da população residente) e desde 2015 que o valor anual deste indicador é sempre inferior a 300 mil (o que significa que menos de 3% da população aufere esta prestação). O RSI assume-se, portanto, como uma prestação destinada a uma minoria da população, cuja expressão que tem no debate público ultrapassa largamente o seu peso na despesa do sistema de Segurança Social – representava, em 2017, 1,2% do total da despesa do sistema de Segurança Social, ou seja, cerca de 344 milhões de euros.


Esta é, efetivamente, uma das prestações sociais mais discutidas e questionadas no espaço público, muitas vezes sem que a informação empírica pertinente seja devidamente mobilizada. De facto, condena-se a “subsiodependência” sem se conhecerem as “taxas de rotatividade” dos seus beneficiários, nem os efeitos que exerce na mobilidade individual e interfamiliar dos muito pobres. Estigmatizam-se os seus beneficiários descontextualizando as necessidades materiais de acesso a esta prestação decorrentes do desemprego ou de formas de inserção hiperprecárias no mercado de trabalho. Definem-se retratos críticos sobre as lacunas desta prestação e da reprodução da pobreza extrema que ela presumivelmente viabiliza ou legitima, sem se avaliarem os constrangimentos e as especificidades pessoais, familiares e contextuais/locais que contribuem para isso. Secundariza-se o conjunto de requisitos excecionais que caracterizam o acesso à prestação, assim como as apertadas condições de recurso exigidas e a condicionalidade que lhe está associada no âmbito da ativação das respostas aos seus beneficiários.


Embora existam estudos de cunho local acerca dos impactos do RSI,1 as virtualidades e insuficiências desta prestação estão ainda em boa medida por avaliar de forma integrada e para o conjunto do país. Uma avaliação desse tipo permitiria diferenciar os aspectos intrinsecamente positivos ou negativos desta prestação face a dimensões que têm uma natureza contextual. Este tipo de análise permitiria também abordar uma das questões mais sensíveis que muitas vezes se colocam nos debates em torno do RSI: a responsabilidade individual dos beneficiários do RSI pela reprodução da sua própria situação de pobreza.


Uma visão geral a partir da informação estatística disponível permite traçar algumas pistas. Desde logo, que o número de beneficiários de RSI tende a situar-se em valores mais baixos quando o número de desempregados diminui. O aumento das oportunidades de emprego diminui o risco da pobreza extrema e, portanto, a necessidade de recurso a esta prestação de mínimos sociais. Neste sentido, a condição de beneficiário de RSI tende a resultar da exclusão do mercado de trabalho e não de uma escolha. Mas mesmo o emprego, tal como ele é estatisticamente definido,2 não significa que os trabalhadores escapem a formas de pauperização material agudas, como aquelas que enquadram o acesso ao RSI. Demonstrar-se-á neste texto que uma parte não despicienda dos beneficiários de RSI tem rendimentos do trabalho – muito baixos e insuficientes para garantir mínimos de subsistência.


A correlação entre o número de desempregados e o número de beneficiários de RSI não é, no entanto, linear. Desde logo porque as regras de acesso à prestação peneiram o número de possíveis beneficiários – isto explica porque é que em 2012 e 2013, mesmo num contexto de aumento acentuado do desemprego, o número de beneficiários de RSI diminuiu. O mesmo raciocínio, mas agora seguindo uma lógica inversa, poderá ser feito em relação à manutenção do número de beneficiários do RSI num contexto de redução progressiva do desemprego –condições de acesso à prestação menos rígidas a partir de 2016. A variação do número de beneficiários tem efetivamente aspetos dinâmicos associados aos processos de emprego e desemprego, mas obedece também a tendências de reprodução individual e interfamiliar da pobreza que, pelo menos em parte, não são anuladas por esta prestação – e pelas medidas de integração social que a acompanham.


Como se referiu, há aspetos relacionados com esta prestação acerca dos quais importa aprofundar o conhecimento existente e disponível no espaço público. Este estudo procura responder a alguns deles, outros serão analisados no futuro a partir das pistas aqui abertas. Antes de se entrar na análise da informação estatística, importa enquadrar sucintamente o regime jurídico do RSI e a sua evolução.


2. O regime jurídico do RSI


O RSI é uma prestação social não contributiva do sistema de proteção social de cidadania (subsistema de solidariedade), destinada a assegurar às pessoas e aos seus agregados familiares recursos que contribuam para a satisfação das suas necessidades mínimas e para o favorecimento de uma progressiva inserção social, laboral e comunitária.


Esta prestação corresponde a uma Recomendação europeia à qual Portugal só tardiamente deu resposta e resulta do reconhecimento de que a situação de exclusão devida à insuficiência de recursos viola o direito social fundamental a um mínimo de existência condigna. É nessa medida que o Estado deve garantir os pressupostos para uma existência humana digna e criar mecanismos para uma progressiva e efetiva inserção social.


O RSI foi instituído pela Lei n.º 13/2003, de 21 de maio, em substituição do rendimento mínimo garantido (RMG), aprovado pela Lei n.º 19-A/96, de 29 de junho. Consiste numa prestação em dinheiro e num programa de inserção que integra um contrato de inserção (conjunto de ações estabelecidas de acordo com as características e condições do agregado familiar do requerente da prestação, visando uma progressiva inserção social dos seus membros).


Esta prestação é atribuída aos agregados familiares cujo rendimento global mensal se situa abaixo do valor máximo da prestação, o qual é definido de acordo com uma escala de equivalência que tem em conta a dimensão e a composição desse agregado. O montante do apoio mensal resulta da diferença entre o valor do RSI, calculado a partir da dimensão e composição do agregado familiar, e a soma do rendimento global mensal do agregado familiar. Esta prestação baseia-se, portanto, numa lógica diferencial.


Tal como acontecia com o RMG, o valor de referência do RSI começou por ser indexado ao montante legalmente fixado para a pensão social do subsistema de solidariedade (seguiu esta lógica até 2012). O regime jurídico do RSI introduziu, no entanto, condições específicas de atribuição da prestação social, designadamente a obrigatoriedade de o beneficiário estar inscrito como candidato a emprego no centro de emprego da área de residência há, pelo menos, seis meses, no momento da apresentação do requerimento, e ter realizado as diligências adequadas à obtenção de emprego, bem como ter efetuado as comunicações obrigatórias ao centro de emprego respetivo. Foi também introduzido um maior número de ações no acordo de inserção para cumprimento dos beneficiários.


A crise económica e financeira internacional, iniciada em 2008 e que se agudizou a partir de 2010/2011, e a políticas do denominado “ajustamento” alteraram de forma significativa as regras desta prestação. Desde logo, um maior enfoque nas políticas de “ativação”. Os beneficiários com idade entre os 18 e os 55 anos, que não estavam integrados no mercado de trabalho e que não estivessem incapacitados, ficaram abrangidos por medidas de reconhecimento e validação de competências escolares ou profissionais, medidas de formação, educação ou de aproximação ao mercado de trabalho, num prazo máximo de seis meses após a subscrição do programa de inserção. A recusa de emprego conveniente, de trabalho socialmente necessário, de formação profissional ou de outras medidas ativas de emprego passou a implicar a cessação da concessão da prestação social e a inibição da sua atribuição pelo período de 24 meses.


O Decreto-Lei n.º 133/2012, de 27 de junho, por seu lado, instituiu que a atribuição da prestação do rendimento social de inserção fosse dependente do valor do património mobiliário e que o valor dos bens móveis sujeitos a registo do requerente e do seu agregado familiar não pudessem ser, cada um deles, superior a 60 vezes o valor do indexante dos apoios sociais (IAS).


O RSI passou a ser atribuído apenas após a assinatura do contrato de inserção e tornou-se obrigatória a inscrição dos beneficiários no centro de emprego. A renovação anual da prestação deixou de ser automática, passando a estar dependente da apresentação de um pedido de renovação por parte dos respetivos titulares. Alargaram-se as situações de cessação da concessão do RSI, passando a ser causa de cessação, entre outras, a falta de comparência injustificada a quaisquer convocatórias efetuadas pelos serviços gestores da prestação, bem como situações em que a subsistência do titular da prestação é assegurada pelo Estado, nomeadamente o cumprimento de prisão em estabelecimento prisional e a institucionalização em equipamentos financiados por este.


O período 2010-2013 foi marcado, em termos gerais, pela redução da generosidade da prestação e pelo aumento das restrições no acesso à mesma. Em 2010, por via do Decreto-Lei n.º 70/2010, alargaram-se os rendimentos tidos em consideração para a avaliação da situação económica dos indivíduos e das famílias, eliminaram-se alguns benefícios complementares à prestação principal, restringiram-se os elementos do agregado doméstico elegíveis para beneficiar da prestação e, sobretudo, passou a utilizar-se a escala de equivalência da OCDE para se definir o valor de referência da prestação.3 Em 2012, a escala de equivalência foi novamente alterada – introduziu-se a escala de equivalência modificada da OCDE, menos generosa em relação ao valor de referência da prestação para os outros adultos que não o titular e para os menores.4


O valor de referência do RSI não foi alterado no período mencionado (189,52 euros por mês), mas as mexidas na escala de equivalência implicaram não só uma redução do valor do RSI atribuível às famílias, mas também uma diminuição dos beneficiários elegíveis – passou a ser necessário ser-se ainda mais pobre para se ter acesso ao RSI.5 Em 2013, o valor de referência do RSI, atribuível a um indivíduo só que não tivesse quaisquer recursos monetários, foi reduzido para 178,15 euros por mês. Entre 2010 e 2013, o valor da prestação de RSI para um casal com dois filhos decaiu 34%, representando naquele primeiro ano 64% do limiar de pobreza e 42% neste último.6 


Em 2016 e 2017, foi aumentada a generosidade da prestação e reintroduzidas algumas garantias aos beneficiários do RSI. Aprovou-se uma pequena subida do valor do RSI, passando o seu valor a corresponder a 43,173% do valor do IAS (Decreto-Lei n.º 1/2016, de 6 de janeiro). Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 90/2017, de 28 de julho, instituiu a reavaliação dos requisitos e condições gerais de atribuição da prestação, designadamente no que diz respeito à residência legal em Portugal e aos termos da sua comprovação, perante as declarações de inconstitucionalidade decretadas pelo Tribunal Constitucional no que se refere à diferenciação dos critérios de residência legal por parte dos cidadãos nacionais e dos cidadãos pertencentes a Estados que não sejam membros da União Europeia. Os beneficiários passaram a ter direito à prestação a partir da data em que o requerimento se encontrasse devidamente instruído, não fazendo depender o mesmo da celebração do contrato de inserção. Consagrou-se, ainda, a possibilidade desta prestação ser requerida por cidadãos acolhidos em respostas sociais de natureza temporária, internados em comunidades terapêuticas ou em unidades da rede nacional de cuidados continuados integrados ou, ainda, que estejam a cumprir pena de prisão antes da respetiva saída ou alta (iniciando-se o pagamento da prestação no mês da saída ou da alta, favorecendo, deste modo, a sua inserção e o regresso à vida ativa).


Em 2020, o valor máximo de RSI atribuível a um indivíduo titular é de 190,99 euros por mês (100% do valor de referência). Ou seja, um indivíduo que viva sozinho e tenha um rendimento mensal superior a este valor não tem direito a RSI. Este valor é de 133,69 euros para os restantes adultos (70% do valor de referência) e 95,50 euros para as crianças ou jovens com menos de 18 anos (50% do valor de referência) (Portaria n.º 27/2020, de 31 de janeiro).


Na atualidade, têm direito ao RSI as pessoas ou famílias que necessitam de apoio para melhor integração social e profissional, que se encontrem em situação de pobreza extrema, mas também os cuidadores informais (Lei n.º 100/2019, de 06 de setembro). A prestação é atribuída pelo período de 12 meses, renovável, desde que se mantenham as condições de atribuição.


3. Um retrato estatístico do RSI: beneficiários, valores e territórios


O número de beneficiários e famílias com processamento da prestação rendimento social de inserção tem-se mantido relativamente estável nos últimos anos, apresentando alguma diminuição. Desde 2015, o número anual de beneficiários é inferior a 300 mil pessoas, enquanto o número de famílias tem variado em torno das 130 mil.


Figura 1. Evolução anual do número de beneficiários e de famílias com processamento de RSI


Fonte: Instituto de Informática.



A composição social dos beneficiários de RSI é equilibrada em relação ao número de homens e mulheres (cerca de 48% e 52%, respetivamente, em 2019), evidenciando um peso relativo muito elevado dos grupos etários mais novos: em 2019, 41% dos beneficiários desta prestação tinham menos de 25 anos e 31% menos de 18 anos. Isto significa que cerca de 1/3 dos beneficiários do RSI são menores de idade.


O risco de pobreza adensa-se entre os agregados domésticos mais numerosos, nomeadamente nos que são compostos por três ou mais dependentes. Os dados atrás mencionados indiciam que também a pobreza extrema tenderá a seguir este padrão e contribuem para o questionamento da narrativa da culpabilização de quem recebe esta prestação. Muitos dos beneficiários desta prestação são, na verdade, menores de idade, cujas condições materiais de existência, pautadas por formas de destituição material severas, seriam ainda piores caso não tivessem acesso a esta prestação. A pobreza infantil, em particular a pobreza infantil intensa, é um reflexo das condições materiais das suas famílias e revela a importância dos mecanismos de proteção social orientados para a garantia de recursos (mínimos) ao nível do agregado familiar.


A este respeito, importa ter também em consideração que o RSI é desenhado para ter impactos não apenas materiais, mas também no plano das oportunidades. De facto, o acesso das famílias ao rendimento social de inserção mitiga não só o sofrimento material destes menores (e dos restantes elementos do agregado), mas também outras formas de exclusão social – por exemplo, ao nível dos trajetos escolares dos filhos das famílias muito pobres. 


A Figura 2 ilustra o peso que os beneficiários de RSI têm no total da população ativa, tendo por referência territorial os municípios do país, no ano de 2019. Tal como é possível observar, o valor deste indicador tem uma variação intermunicipal bastante significativa. Em geral, os municípios do litoral de Portugal continental (exceptuando alguns municípios da Área Metropolitana de Lisboa e da Área Metropolitana do Porto) e da região do Minho tendem a apresentar valores mais baixos para este indicador. Analisando esta realidade a um nível mais agregado (NUTS III), são as regiões do Cávado, Oeste, Ave e Alto Minho as que apresentam uma menor incidência de recebimento desta prestação social: 9,8‰, 12,5‰, 13,2‰ e 13,7‰, respetivamente.


O peso relativo dos beneficiários de RSI é mais pronunciado nas regiões do interior de Portugal continental, em alguns municípios do Alentejo (Mourão, Monforte e Moura – todos eles com um valor acima de 100 beneficiários por 1000 habitantes em idade ativa –, mas também Elvas e Vidigueira), no Porto e, sobretudo, na Região Autónoma dos Açores.


Quando se analisa a taxa de risco de pobreza, ambas as regiões autónomas se destacam negativamente no panorama nacional, apresentando para este indicador valores muito superiores à média do país, no ano de 2018: 31,8% no caso da Região Autónoma dos Açores e 27,8% na Região Autónoma da Madeira – valores superiores à media nacional em 14,6 pontos percentuais (p.p.) e 10,6 p.p., respetivamente. No entanto, em relação à proporção de beneficiários de RSI por 1000 habitantes em idade ativa, que funciona como um bom preditor da disseminação da pobreza extrema ou intensa (e não do risco de pobreza, tal como ele é estatisticamente definido), os resultados destas duas regiões são bastante diferentes: enquanto a Região Autónoma da Madeira apresenta valores em linha com a média nacional, na Região Autónoma dos Açores o valor deste indicador multiplica por mais de três essa média.  


De facto, a realidade da Região Autónoma dos Açores não encontra paralelo no restante território nacional, à exceção dos municípios do Alentejo já mencionados. Na verdade, o valor desmesurado assumido por este indicador não é uma realidade transversal a todas as ilhas do arquipélago, mas apenas aos municípios da ilha de São Miguel.7 Entre os dez municípios do país que registam um número mais elevado de beneficiários de RSI por 1000 habitantes em idade ativa, seis são os que compõem esta ilha. No município da Ribeira Grande, o valor deste indicador era, em 2019, sete vezes superior à média nacional (220,3‰ para 30,1‰).



Figura 2. Beneficiários de rendimento social de inserção por 1000 habitantes em idade ativa, por município (2019)


Fonte: Instituto Nacional de Estatística (INE), fonte primária: Instituto de Informática.



Sendo uma prestação destinada ao apoio aos muito pobres, o RSI visa garantir condições materiais mínimas aos desempregados desprotegidos, ou seja, aos desempregados (e a outros inativos) que não têm acesso ao subsídio de desemprego, mas também a quem tem inserções muito incipientes no mercado de trabalho, incapazes, por isso, de assegurar rendimentos do trabalho suficientes para imunizar face à pobreza.


A Figura 3 permite observar a evolução mensal dos beneficiários de RSI e dos desempregados registados nos centros de emprego, desde janeiro de 2004 até à atualidade.8 Uma primeira conclusão que é possível retirar da análise desta figura prende-se com o facto de o número de beneficiários de RSI tender a situar-se em níveis mais baixos quando o desemprego recua. É isso que tem acontecido desde 2013. Esta relação não é, no entanto, linear, já que as alterações introduzidas nos critérios de acesso a esta prestação condicionam quem é ou não elegível para dela beneficiar. É por isso que o número de beneficiários de RSI diminuiu entre meados de 2010 e 2013, um contexto de forte aumento do desemprego. E, inversamente, foram as políticas de maior acessibilidade a esta prestação, introduzidas em 2016 (nomeadamente o aumento do valor de referência), que ajudam a explicar a manutenção do número de beneficiários num contexto de queda acentuada do desemprego.


Figura 3. Evolução mensal do número de desempregados e de beneficiários de RSI

(01/2004-09/2020)


Fonte: Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) e Instituto de Informática.


Tal como se referiu, o RSI é uma prestação de último recurso que apoia sobretudo desempregados, mas também pessoas consideradas empregadas que têm rendimentos do trabalho, seja por conta de outrem, seja trabalho independente. Em Portugal continental, no ano de 2019, a proporção de beneficiários de RSI que têm rendimentos do trabalho face ao total de beneficiários de RSI com idade entre os 18 e os 64 anos era de 11%.9 Os municípios das regiões do Minho, de Trás-os-Montes, de Aveiro, da Beira Baixa e do Baixo Alentejo apresentam valores mais baixos para este indicador. As áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, a região Oeste, o Alentejo Litoral e o Algarve apresentam valores intermédios (embora no Algarve vários municípios apresentem valores elevados). Em Vila Nova de Foz Côa este valor ascende a 29% e em Vendas Novas, Vila Real de Santo António, Trancoso, Vila Nova de Poiares e Mora é também superior a 20%. No seu conjunto, a região do Alentejo Central é a que apresenta uma maior proporção de beneficiários de RSI que têm rendimentos do trabalho.






Figura 4. Proporção de beneficiários de RSI que têm rendimentos do trabalho entre os beneficiários de RSI com idade entre os 18 e os 64 anos, por município (2019) (%)


Fonte: Instituto de Segurança Social; cálculos dos autores.



A Figura 5 ilustra a evolução da proporção de beneficiários de RSI que auferem rendimentos do trabalho no universo dos beneficiários com idade entre os 18-64 anos. O valor deste indicador rondava os 20% aquando da introdução da prestação, tendo diminuído de forma muito significativa entre 2010 e 2015. Tal dever-se-á, por um lado, ao aumento das restrições no acesso a esta prestação, em particular o nível de rendimento global do agregado familiar (para se ter acesso ao RSI passou a ser necessário ser-se ainda mais pobre devido às alterações introduzidas em 2010, 2012 e 2013 – ver ponto 2 deste texto); por outro, ao aumento do desemprego verificado no período do “ajustamento”, nomeadamente até 2013.


Figura 5. Proporção de beneficiários de RSI que têm rendimentos do trabalho entre os beneficiários de RSI com idade entre os 18 e os 64 anos (%)


Fonte: Instituto de Segurança Social; cálculos dos autores.


A Figura 6 apresenta uma representação gráfica da duração média do recebimento do RSI, por escalão de duração e município. Não parecem existir padrões muito vincados na variação deste indicador, embora seja visível que o seu valor é consistentemente maior nos municípios da Área Metropolitana do Porto e menor nos municípios fronteiriços do Alto Minho, das Beiras, em alguns municípios do Oeste e do eixo central das regiões do Algarve e Alentejo. Contudo, a grande regularidade prende-se com a prevalência da duração média desta prestação entre dois anos e meio e três anos.



Figura 6. Duração do recebimento da prestação de RSI, por município (2019) (meses)


Fonte: Instituto de Segurança Social.



A Figura 7 ilustra a evolução da duração média do RSI desde a introdução desta prestação. Os valores deste indicador são necessariamente mais baixos nos primeiros anos, tendo aumentado de forma consistente até 2014, ano em que se regista o valor mais alto no período em apreço (37 meses). Nos anos seguintes, num contexto de recuperação económica e de emprego, o valor deste indicador decresceu: em 2015 para 34 meses, nos três anos seguintes para 31 meses. No entanto, em 2019, num período em que o desemprego continuou a decrescer, a duração média de recebimento do RSI aumentou.




Figura 7. Duração média do rendimento social de inserção (meses)


Fonte: Instituto de Segurança Social.


Importa, por último, analisar os valores médios recebidos por beneficiário e por família com processamento de RSI, de acordo com o distrito. Em relação ao primeiro indicador, não existem diferenças muito assinaláveis no território nacional, à exceção do verificado na Região Autónoma dos Açores, a qual apresenta para este indicador um resultado bastante abaixo da média nacional (-28%). Tal dever-se-á ao facto de uma parte significativa dos beneficiários de RSI, em particular dos que têm 18 e mais anos, auferirem também rendimentos do trabalho. É, no entanto, interessante constatar que em relação ao valor médio processado por família, a Região Autónoma dos Açores é um dos territórios em que esta prestação é mais alta, o que indicia que as famílias beneficiárias desta prestação tendem a ser, nessa região, comparativamente numerosas. Os distritos do Alentejo são os que apresentam valores mais elevados para este indicador.



Figura 8. Valor médio do RSI por beneficiário e família com processamento da prestação, por distrito (2019) (Euro)




Fonte: Instituto de Informática.

Nota: Distritos ordenados por ordem decrescente de acordo com o valor médio da prestação de RSI por família.


Tal como se referiu, o RSI destina-se a combater a pobreza extrema – é um instrumento de política pública que tem sobretudo impactos na diminuição da intensidade da pobreza. De facto, quando se atenta na relação entre o valor máximo do RSI máximo no caso de um titular face ao valor do limiar de pobreza, constata-se que a prestação em causa representa menos de metade desse limiar: em 2018, o valor máximo do RSI no caso de um titular adulto que viva só representava 37,2% do valor do limiar de pobreza. Esse desfasamento tem vindo a agravar-se, mesmo em períodos em que o valor de referência máximo do RSI aumentou, nomeadamente entre 2016 e 2018.10 Isto significa que valor do limiar de pobreza tem aumentado a um nível superior face ao valor máximo do RSI.



Figura 9. Valor do RSI (adulto só) em % do limiar de pobreza


Fonte: Instituto de Informática e INE; cálculos dos autores.



4. Conclusão


Apesar do ruído comunicacional em torno da prestação do RSI e da falta de conhecimento e de informação no espaço público, esta tem sido uma das mais estudadas e analisadas desde que foi criada a política social do rendimento mínimo. Este texto pretende ser mais um contributo para o esclarecimento público e para o melhor conhecimento da medida, assim como da situação social e territorial dos beneficiários.


Sublinhou-se neste estudo que esta prestação é um apoio de último recurso às famílias muito pobres, cujo universo de beneficiários é constituído por um número muito significativo de crianças e menores de idade. O RSI é fundamental para que a situação de vulnerabilidade social destas famílias se atenue um pouco, sem, no entanto, ser suficiente para os retirar da situação de pobreza. É conhecido que no decorrer da recessão anterior foi neste grupo que o risco de pobreza mais cresceu. Dado o impacto profundo da crise da pandemia na economia e na sociedade, teme-se que as crianças e os jovens voltem a ser os mais afetados. Por isso, é imprescindível que a política social do RSI não só continue a responder ao flagelo da pobreza extrema e da privação material severa, como seja reforçada a sua abrangência e eficácia. 


Também se demonstrou que parte das pessoas que recebe RSI são trabalhadores cujos rendimentos auferidos os colocam numa situação de pobreza intensa. Este dado desconstrói ideias feitas sobre a suposta generalizada subsidiodependência e respetiva acomodação ao usufruto da transferência monetária.


Por último, é interessante atentar na significativa variação da incidência de beneficiários desta prestação ao longo do território nacional. Tal estará fortemente relacionado com a distribuição territorial de um conjunto de problemas e estrangulamentos sociais e económicos, bem como com a maior ou menor capacidade e eficácia das políticas públicas para fazer face a estas questões.


Este estudo procurou analisar de forma integrada o rendimento social de inserção, identificando algumas das tendências fundamentais que enquadram esta prestação. Para tal mobilizou-se informação nem sempre tida em consideração no debate público e levantaram-se pistas de análise que importa percorrer no futuro. 



Anexo


Principais alterações ao regime jurídico do rendimento social de inserção






1 Ver a este respeito, por exemplo, o estudo Escassos caminhos, de Eduardo Vítor Rodrigues (2010), sobre os beneficiários de rendimento social de inserção em Vila Nova de Gaia.

2 “População com idade mínima de 15 anos que, no período de referência, se encontrava numa das seguintes situações: 1) tinha efetuado trabalho de pelo menos uma hora, mediante pagamento de uma remuneração ou com vista a um benefício ou ganho familiar em dinheiro ou em géneros; 2) tinha uma ligação formal a um emprego mas não estava temporariamente ao serviço; 3) tinha uma empresa, mas não estava temporariamente a trabalhar por uma razão específica; 4) estava em situação de pré-reforma, mas a trabalhar” (INE). Para uma análise crítica do conceito de emprego e desemprego ver Caleiras, J. & Caldas, J. C. (2017). Emprego e desemprego: o que mostram e escondem as estatísticas”, in Silva, M. C., Hespanha P. & Caldas, J. C. (coords.). Trabalho e políticas de emprego, Actual, pp. 197-243.

3 De acordo com a escala de equivalência da OCDE (também denominada “escala de Oxford”), o adulto titular tem um peso de 1, os outros adultos 0,7 e as crianças 0,5. Isto significa que no caso do adulto titular, o mesmo tem direito a 100% do valor de referência do RSI, os outros adultos 70% e as crianças 50%. Até a esta alteração, a capitação do rendimento era calculada da seguinte forma: por cada indivíduo maior, até ao segundo, 100% do montante da pensão social; por cada indivíduo maior, a partir do terceiro, 70% do montante da pensão social; por cada indivíduo menor, 50% do montante da pensão social; por cada indivíduo menor, 60% do montante da pensão social, a partir do terceiro filho.

4 De acordo com a escala de equivalência modificada da OCDE (adotada pelo Eurostat), o adulto titular tem um peso de 1, os outros adultos 0,5 e as crianças 0,3. Isto significa que no caso do adulto titular, o mesmo tem direito a 100% do valor de referência do RSI, os outros adultos 50% e as crianças 30%.

5 Além disso, o Decreto-Lei n.º 133/2012 procedeu à desindexação do valor do rendimento social de inserção face ao valor da pensão social e à sua indexação ao IAS.

6 Rodrigues, C. F., Figueiras, R & Junqueira, V. (2016). Desigualdade do rendimento e pobreza em Portugal, FFMS.

7 Esta evidência já tinha sido identificada em Diogo, F. (2019). Algumas Peculiaridades da Pobreza nos Açores. Sociologia Online, 19, pp. 81-101. Entre outras questões, este artigo avança com algumas hipóteses explicativas acerca da maior incidência da pobreza na Região Autónoma dos Açores.

8 O rendimento social de inserção iniciou-se em junho de 2003 e teve o primeiro processamento em janeiro de 2004, tendo os beneficiários do rendimento mínimo garantido sido integrados faseadamente entre 2004 e 2006.

9 Não foi possível apurar junto da Segurança Social, em tempo útil, a informação referente às regiões autónomas.

10 O valor do RSI situou-se em 178,15 euros, 180,99 euros, 183,84 euros e 186,68 euros em 2015, 2016, 2017 e 2018. No momento de escrita deste texto não são ainda conhecidos os valores do limiar de pobreza para os anos seguintes.